BRASÍLIA — Sem alarde, o Congresso aprovou um pacote que abre caminho para mais uma farra de distribuição de recursos públicos neste ano eleitoral. Em menos de vinte minutos, os parlamentares votaram dois projetos que tornam ainda mais oculto o orçamento secreto, autorizam o governo a distribuir de cesta básica a tratores no meio da campanha e permitem ao Executivo tirar verba já reservada a um município para colocar em outro, de acordo com conveniências políticas. As medidas contrariam pareceres técnicos, lei eleitoral e até a Constituição.
As propostas foram aprovadas anteontem, enquanto o Congresso estava mobilizado em torno de temas como a PEC Kamikaze, que permite ao governo conceder benefícios sociais no período eleitoral, e a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que define as regras para o orçamento do próximo ano. Uma delas chegou a ser votada sem que as alterações fossem nem sequer lidas em plenário. Como a análise foi simbólica, é impossível saber como cada um votou.
Os congressistas ignoraram um relatório das consultorias da Câmara e do Senado, que considerou inconstitucional a mudança no destino final de recursos já empenhados. Segundo o texto aprovado, o governo pode retirar o dinheiro já reservado para uma obra e mudar o fornecedor que receberá o recurso, a localidade ou trocar o objeto da contratação sem nenhuma discussão ou planejamento.
Essas mudanças foram incluídas de última hora no relatório do projeto, apresentado pelo deputado Carlos Henrique Gaguim (União Brasil-TO), e os parlamentares votaram sem ler. O presidente Jair Bolsonaro (PL) ainda precisa sancionar os projetos, mas, antes da votação, o Centrão já havia combinado o apoio do Planalto às propostas.
Na prática, políticos que romperem com prefeitos de determinada cidade poderão agora punir a traição, realocando os recursos em outro município. No período eleitoral, a manobra tende a virar moeda de troca. Um prefeito pode, por exemplo, perder o dinheiro já reservado para sua cidade se um candidato a deputado ou a senador considerar que ele não entregou os votos prometidos. O artifício aumenta o poder do congressista sobre o prefeito.
Técnicos do Congresso observam que a manobra fere princípios da Constituição, entre eles o que proíbe uma despesa de ser alterada de um ano para outro sem a aprovação de novo Orçamento. Além disso, pagar um recurso para um credor diferente, ou para uma obra distinta da inicialmente autorizada, desconfigura o princípio do empenho na administração pública, que consiste em definir para onde vai o dinheiro, quem vai executar e o que de fato será entregue.
A artimanha foi chamada nos bastidores de “pedalada orçamentária” e preocupa especialistas, que veem a possibilidade de bilhões do Orçamento serem manipulados para atender a interesses políticos. O relator Carlos Gaguim justificou a manobra sob o argumento de que vai possibilitar a retomada de 20 mil obras paradas no Brasil, que estariam suspensas por problemas contratuais, ao permitir alternar o fornecedor ou a localidade. A solução para esse impasse, porém, seria cancelar o recurso e emitir uma nova nota de empenho, segundo especialistas.
“Não havendo amparo na Constituição e na Lei n.º 4.320/1964 para possibilitar que um credor possa ser pago à conta do orçamento anterior, quando esse não tiver sido originalmente indicado na nota de empenho e na correspondente inscrição dos restos a pagar, não se encontra justificativa para a alteração proposta”, diz a nota da consultoria, elaborada antes da aprovação e ignorada pelos parlamentares.
Políticos mais experientes se disseram chocados com o artifício. “Trocar o credor no exercício (ano) seguinte... Gente, eu acho que eu não estou no Brasil, não”, disse o deputado Mauro Benevides Filho (PDT-CE), que é economista e especialista em contas públicas.
Outra mudança aprovada no pacote do Congresso autoriza o governo a realizar doações, incluindo cestas básicas, redes de pesca, ambulâncias, tratores e outros maquinários agrícolas em plena campanha. A medida confronta a legislação eleitoral, que proíbe essa prática. Em abril, o Congresso já havia estendido o prazo até julho. Agora, prorrogou até o final do ano. “Nós temos de mudar o que está lá na lei eleitoral. A lei eleitoral é que está errada”, disse o deputado Hildo Rocha (MDB-MA) durante a votação. “Ah, bom, agora o argumento é maravilhoso”, ironizou o líder da Minoria no Senado, Jean Paul Prates (PT-RN).
No mesmo bolo de projetos, os parlamentares puseram mais uma camada de sigilo sobre os recursos do orçamento secreto. Até agora, não é possível identificar os beneficiados com o esquema do toma lá, dá cá. Apenas o nome do relator-geral do Orçamento aparece associado a esse tipo de emenda. Com o projeto aprovado na terça-feira, 11, nem isso.
A ocultação do nome do relator-geral ocorrerá quando as emendas forem remanejadas para outra rubrica, chamada RP-2, sob o controle direto dos ministérios. Com isso, o Congresso dribla a determinação judicial que obriga a dar transparência para o manejo do dinheiro público.
Revelado pelo Estadão, o orçamento secreto vai garantir a um grupo seleto de deputados e senadores definir onde devem ser aplicados R$ 19 bilhões, no próximo ano, além das emendas a quem têm direito. O dinheiro é distribuído pelos presidentes da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
O senador Marcos Do Val (Podemos-ES) disse ao Estadão que recebeu R$ 50 milhões em emendas por ter votado em Pacheco para a presidência do Senado. Foi a primeira vez que um parlamentar admitiu publicamente o critério de divisão do dinheiro.